Quando entregou o filho aos médicos, na porta do centro cirúrgico do Hospital de Base de São José do Rio Preto, Saluelen Fernanda Bellei, 23 anos, recomendou. “Você vai para trocar de coraçãozinho, mas volta, tá? Volta que a mamãe vai ficar aqui fora esperando”. O pequeno David Henrique Bellei, a mãe contou, entrou na sala sorridente. “Só chorou um pouquinho quando eu falei tchau”. Com apenas um ano e nove meses de vida, ele ainda é muito pequeno para saber que do lado de fora do hospital uma batalha pela sua vida já estava acontecendo.
Foi de madrugada, às 4h da manhã, que a equipe médica do Hospital de Base começou a organizar o segundo transplante de coração em criança que Rio Preto e o interior do Estado já realizaram. O órgão transplantado, que era de uma criança de sete anos, estava a mais de 300 quilômetros de distância de Rio Preto, no Hospital das Clínicas de Botucatu. Foi preciso brigar com o relógio para conseguir colocá-lo ainda pulsando no peito de David. Depois que o órgão é retirado, os médicos tem apenas quatro horas para transplantá-lo, para que ele não perca suas funções.
“O ideal mesmo é que isso seja feito em duas horas, mas essa era a única chance que nós tínhamos para salvar o David”, conta Ulisses Croti, cirurgião cardiovascular pediátrico responsável pela cirurgia. David sofria de miocardiopatia dilatada, que é quando o coração não funciona no ritmo que deveria. A família descobriu quando ele estava prestes a completar um ano de idade, após uma pneumonia. Desde então, a criança tem idas e voltas constantes da internação.
Da última vez em que precisou voltar ao Hospital de Base, há cerca de três meses, não saiu mais. “Ele estava na UTI, sobrevivendo pelos remédios que estimulam o coração. Podia morrer a qualquer momento”, explica a médica. Há duas semanas, a equipe médica resolveu realizar o transplante e desde então a criança estava na fila de espera. “Nós sabíamos que poderia aparecer um coração a qualquer momento. Todo dia eu acordava e pensava: será que é hoje? Mas não pensei que seria tão rápido”, nas palavras da mãe.
Os médicos foram avisados às 4h da madrugada de ontem pela central de órgãos em São Paulo que um coração ideal para David estava disponível, mas que seria preciso buscá-lo na cidade de Botucatu. Às 12h, o médico Ulisses Croti já estava no Hospital das Clínicas para iniciar a retirada do órgão. Foi preciso que o helicóptero Águia da Polícia Militar o levasse a cidade para realizar o procedimento. Às 10h40 da manhã, quatro oficiais da Polícia Militar e o médico alçaram voo, que demorou cerca de 1h20. Quando eles retornaram, já com o coração de 10 centímentos em uma caixa térmica, um esquema já estava formado no Hospital de Base para que nenhum segundo fosse desperdiçado.
Croti desceu do helicóptero no campo de futebol de Famerp correndo, acompanhado pelos oficiais. A caixa com o coração foi colocada em um carro que em menos de dez segundos já parava na emergência do Hospital de Base. No centro cirúrgico, a equipe aguardava pronta para começar o transplante. “Era médico correndo daqui, médico entrando de lá: tudo para não perder tempo”, conta a mãe Saluelen, que acompanhou toda a ação da sala de espera do centro cirúrgico.
O esforço foi suficiente para conseguir realizar o processo entre a retirada do coração e o fim do transplante em 2h38. Os 38 minutos que foram além do ideal, fizeram com que o novo coraçãozinho de David batesse um pouco mais devagar do que o esperado, mas batesse. “O maior risco era que quando nós colocássemos o coração no peito de David, ele não batesse. Ele está mais devagar, mas David passa muito bem”, comemorou Croti minutos após terminar a cirurgia.
Às 17h30 de ontem o pequeno vencedor mostrou que seguiu as recomendações da mãe. “Ele vai voltar pra mim! Não vai ser agora que Deus vai levar o meu filho. Ele entendeu o que falei”, comemorou a mãe quando recebeu da médica Alexandra a melhor notícia da vida “Ele está nascendo de novo e, para mim, é a mesma alegria do parto. Vou comemorar dois aniversários do meu filho”.
As primeiras 24 horas após a cirurgia são as mais arriscadas para David. A médica Alexandra explicou que passaria a noite no hospital monitorando a criança. Ele ainda irá ficar cerca de uma semana na UTI e, se tudo correr bem, poderá estar em casa dentro de 20 dias. Todo o processo foi realizado pelo SUS e comemorado pelos médicos. “Isso demonstra que Rio Preto tem equipes capacitadas para todas as fases de um transplante”, afirmou Croti. “É um alívio muito grande”, nas palavras de Alexandra.
David tinha 10% das funções
A médica Alexandra Barufi explica que a miocardiopatia dilatada faz com que o coração não bombeie o sangue como deveria para o organismo. David tinha apenas 10% das funções funcionando, quando o ideal é pelo menos 80%. Na miocardiopatia, os ventrículos dilatam e, por isso, se tornam incapazes de fazer o bombeamento. Por causa da doença, a criança fica cansada, tem dificuldades de ganhar peso e contrair infecções com facilidade.
Alexandra explica que o transplante é sempre a última opção dos médicos. “Nós tentamos de tudo, mas há duas semanas percebemos que era a única alternativa.” Para que o órgão transplantado seja compatível, o peso da criança que irá fazer a doação deve ser até três vezes maior do que o peso da que recebe.
David pesa 10 kg e a criança doadora pesava 26kg. Apesar de estar quase no limite, a médica explica que a doença de David fazia com que o coração dele fosse maior do que o normal.
Às 16h30 de ontem, Saluelen Fernanda Bellei recebeu de uma enfermeira a notícia de que o novo coração já estava batendo no peito do seu filho. “Agora, os médicos vão fazer a sutura, mas o pior já passou, mãe”, avisou a moça. Nesse momento a mãe de David voltou a sorrir.
Ela estava desde as 10h no Hospital de Base. Por volta das 12h, foi para a sala de espera do centro cirúrgico e se despediu do filho. Os olhos inchados mostravam que a pose de felicidade que ela fez questão de manter na frente do pequeno, era mesmo só fachada. “Fiquei firme perto dele, mas depois fiquei assim: choro, paro, volto a chorar”.
Mas essa mãe é das fortes. Ficou sozinha esperando o fim do transplante a maior parte do tempo. O pai de David abandonou o filho quando ele ainda tinha poucos dias de vida. “Agora também eu não quero mais saber dele. Eu estou vivendo toda essa dor sozinha, e suportando. Tenho amor de mãe e pai para dar ao David”.
Saluelen mora com a mãe, o irmão e outros três filhos em uma casa no bairro Caic, em Rio Preto. A mãe, idosa, não pôde ir ao hospital por riscos à saúde. “Era muita emoção pra ela”, explica Saluelen. Uma tia e duas primas se revezavam para ficar com ela, mas em alguns momentos precisaram sair. “Eu achei que aguentasse ficar sozinha.
Mas a gente não é tão forte quanto pensa nessas horas, né?”. Mesmo assim, ela se manteve firme. Saltitava entre o choro e a serenidade e, para escapar da agonia, lembrava dos outros três filhos que deixou em casa. Eles têm sete, cinco e três anos. “Está todo mundo esperando o David voltar.”
Saluelen tem só 23, mas engravidou nova, na adolescência. A pouca idade não quer dizer muito, perto da força que David a ensinou a ter. “Pelo meu filho, eu virei outra pessoa”. Agora, o único plano é ver o pequeno crescer. A mãe até pensa em fazer faculade, retomar a vida, mas logo volta ao plano principal. “Quem sabe um dia dá certo… mas agora eu quero mesmo é ver o meu filho viver.”
Helicóptero Águia de São José do Rio Preto agiliza procedimento
Essa é a terceira vez que o helicóptero Águia 17 foi utilizado para transportar órgãos para transplantes. Para o comandante e piloto da aeronave, Carlos Donizetti Souza Siqueira, 37 anos, que já participou de outra ação em 2011, é gratificante o resultado alcançado nesse tipo de operação. “É uma ocorrência atípica em nossa rotina. Estamos correndo contra o tempo. Fazer com que a missão seja bem sucedida é nosso maior objetivo.”
O apoio do Águia é resultado de parceria entre a Polícia Militar e a Secretaria de Saúde do Estado. Foram envolvidos quatro PMs – piloto, co-piloto e dois policiais tripulantes. “Assim que fomos informados pelo hospital do nosso apoio, aguardamos o corpo clínico definir os últimos detalhes e alçamos voo. Cada minuto era importante para que o resultado fosse positivo”, afirma o comandante.
Após uma hora e vinte minutos, a equipe estava pousando no hospital universitário de Botucatu. “Um carro já estava esperando o médico para levá-lo até o centro cirúrgico. Ficamos ali de prontidão e após uma hora e dez minutos voltamos para Rio Preto. Às 14h20 estávamos pousando no Hospital de Base. Alí sabíamos que nossa parte havia sido realizada com sucesso”, diz Siqueira.
Há 20 anos na corporação, o comandante já tinha participado de outros transportes de órgãos. “Essas situações são frequentes em São Paulo. Muitos órgãos chegam nos aeroportos e o Águia é utilizado para agilizar o transporte em locais de trânsito muito intenso. Em 2011 participei do transporte de um rim e um fígado que também vieram para um paciente hospitalizado no HB.”
Fonte: Diário Web / Texto: Daniela Penha.