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Eduardo Alexandre Beni
Editor Resgate Aeromédico

Publicado originalmente na Revista DÉDALO da Aviação do Exército, edição de Out/2018

Para aqueles que trabalham com segurança de voo em uma organização sabe como é tormentoso lidar com um incidente, acidente ou qualquer ação que afete a segurança das operações aéreas, especialmente aqueles que causam danos, lesões ou mortes.

Esse é um assunto que nós aviadores, em algum momento da profissão, tivemos que enfrentar. Saber tratar e entender os fatos apresentados e diferenciá-los de fofocas, sensacionalismos, subjetivismos e prejulgamentos é uma difícil tarefa desempenhada por essas pessoas.

Para entendermos melhor a complexa trajetória jurídica da segurança de voo no Brasil, vamos apresentar uma breve evolução histórica das leis e decretos e que foram formatando seu caminho no País, repleta de contradições.

Sabemos que a partir da década de 20 inicia-se um importante desenvolvimento da aviação militar e da aviação civil. Nesse período as atividades de investigação de acidentes eram organizadas e direcionadas nos moldes do inquérito policial.

Naquela época os acidentes eram investigados com a única finalidade de apurar responsabilidades. A Marinha realizava o Inquérito Policial Militar (IPM) e o Exército realizava o Inquérito de Acidente Aeronáutico. Em ambos os casos, eram realizadas investigações com o objetivo de se atribuir ou isentar responsabilidades.

Sabe-se que até o início dos anos 30 não existia formas de controle ou registro das ocorrências relacionadas à aviação civil brasileira. Após a criação da Força Aérea em 1941, esses procedimentos foram reformulados e unificados sob a responsabilidade da Inspetoria Geral da Aeronáutica, sendo criado o inquérito técnico sumário para a investigação dos acidentes aeronáuticos.

Apesar da mudança do nome do procedimento, o modelo da instrução continuava sendo o inquérito. E é esse modelo que perdura até os dias de hoje, embora não seja reconhecido expressamente e não tenha mais o nome de inquérito, mas somente de sua ultima peça que é o relatório final.

A primeira Constituição Brasileira que tratou do assunto foi a de 1934. De forma pioneira o artigo 5°, inciso XIX, letra “a” da Constituição imputou à União competência privativa para legislar sobre direito aéreo, pois a Constituição anterior de 1891 nada falava.

As demais Constituições Federais trataram do assunto dando competência privativa à União legislar sobre direito aéreo. A Constituição de 1946 e a Emenda Constitucional de 1969 utilizaram a expressão direito aeronáutico, exatamente como fez a Constituição de 1988 (Art. 22, inciso I).

Cumprindo norma constitucional da época, em abril de 1948 foi aprovado pelo Decreto N° 24.749 o Regulamento para o Serviço de Investigação de Acidentes Aeronáuticos, que padronizou procedimentos para a investigação.

Segundo a norma, o objetivo da investigação era elucidar o ocorrido e suas causas, constatar as consequências e tirar ensinamentos. Para isso valia-se de providências preventivas ou medidas repressivas. Ainda sobre isso, o decreto dizia que havendo indício de crime ou contravenção seria instaurado Inquérito Policial Militar, paralela ou posteriormente à investigação do acidente.

Observamos que o modelo de investigação (instrução do procedimento) adotado desde o início foi o mesmo utilizado nos inquéritos policiais. Fica evidente que até hoje o sistema tem incorporado o termo investigação como referencial e muito embora tenha evoluído, ainda insiste em seguir esse script, motivando discussões sobre sua utilização ou não em processos judiciais.

De 1948 a 1965 a norma priorizou a investigação, dando menos atenção ao seu caráter preventivo, tanto que o Decerto de 1948 não cita em nenhum momento a palavra “Prevenção”. Em 1949 o Regulamento foi alterado pelo Decreto Nº 26.511, somente no que diz respeito à constituição da Comissão de Investigação e apenas em 1962, através de nova alteração dada pelo Decreto Nº 604, é citado o Anexo 13 da Convenção de Chicago de 1944, que trata da investigação de acidentes aeronáuticos.

Com a inclusão do Anexo 13 inicia-se uma nova perspectiva na investigação, pois o seu caráter preventivo começa a tomar corpo nos procedimentos realizados até então.

Em 1951 nasce a sigla SIPAER identificando o Serviço de lnvestigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, apesar do Decreto N° 24.749 falar apenas em investigação.

Em 11 de outubro de 1965, através do Decreto n° 57.055, a estrutura do SIPAER é alterada e a sigla passa a significar a atividade de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos, agora com novo regulamento, cuja missão era orientar e supervisionar a prevenção de acidentes aeronáuticos a executar a sua investigação.

O Decreto manteve em seu texto a regra que havendo indício de crime ou de contravenção, a autoridade aeronáutica mandaria instaurar, em paralelo ou posteriormente, o Inquérito Policial Militar (IPM), a Sindicância ou o Inquérito Administrativo competente.

Um fato novo e é separação das pessoas nos procedimentos, ou seja, quem participasse da investigação não poderia participar do IPM ou da sindicância.

A questão mais relevante nesse decreto é que permitia o envio do Relatório Final à autoridade policial do local do acidente, independentemente de solicitação, a fim de instruir o inquérito policial.

Vê-se que o Relatório Final poderia ser encaminhado a autoridade local sem sequer haver formalização do pedido, o que contraria a filosofia atual. Mais uma vez encontramos nas normas revogadas, motivos que geraram as diversas interpretações sobre a utilização desses relatórios em ações judiciais.

A partir de 1966 inicia-se um processo de geração de conhecimento e busca de técnicas mais modernas de prevenção e de investigação de acidentes aeronáuticos. Como resultado desse movimento realizado pela Força Aérea, em 1971, através do Decreto N° 69.565, é criado o Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) com atribuições e responsabilidades de órgão central do SIPAER e em 1972, o Decreto Nº 70.050 aprovou o Regulamento para o Serviço de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos dando nova roupagem ao Sistema.

O caráter preventivo assume sua postura definitiva, dando à polícia judiciária a responsabilidade para a realização de investigação nos casos de ilícito penal, entretanto, o Sistema insiste com a terminologia da investigação e com o modelo de instrução inquisitivo.

Com isso, a norma dividiu as ações em razão dos objetivos. O CENIPA investigaria somente para promover a prevenção de acidentes aeronáuticos e a polícia, através do Inquérito Policial, colher elementos sobre materialidade do fato e indícios de autoria para propositura de ação penal.

A curiosidade e a contradição é que nos dois casos utiliza-se o termo investigação e em ambos buscam-se o fatores que deram causa ao acidente, cada um com uma finalidade. Essa ação perdura até os dias de hoje, consolidada com a publicação da Lei nº 12.970, de 2014, que alterou o Código Brasileiro de Aeronáutica e que é questionada por uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5667).

O crescimento da atividade aérea no país provocou a necessidade de dinamizar as atividades de segurança de voo. Conceitos foram atualizados e em 1982, através do Decreto N° 87.249, o CENIPA passou a ser uma organização autônoma.

Agora denominado sistema e não mais serviço o SIPAER adquire novo patamar administrativo, permitindo ao CENIPA tornar-se mais funcional, objetivo e dinâmico no seu trabalho de prevenção de acidentes e incidentes aeronáuticos.

Nessa mesma ocasião foi criado o Comitê Nacional de Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CNPAA), em cujo fórum, sob a direção e coordenação do CENIPA, reúnem-se os representantes de diversas entidades nacionais, públicas e privadas, ligadas às atividades aeronáuticas.

Em 2005 com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) o papel do CENIPA consolida-se. Atualmente é da análise técnico-científica de um acidente ou incidente aeronáutico que se retiram valiosos ensinamentos. Assim, com a melhor definição sobre a aplicação do inquérito, é adotada uma nova filosofia que até hoje tem na prevenção do acidente o seu fundamento, muito embora ainda utilizem o modelo investigativo do inquérito.

Parece que na investigação e nas ações decorrentes de fatos que já ocorreram se gasta muito mais energia e trabalho do que na pesquisa e nas ações preventivas e preditivas.

Importante dizer que, havendo repercussão jurídica, a polícia ou o judiciário poderá utilizar todos os meios de provas legais para a formação de seu juízo. Essa é uma regra universal. Como afastar da Justiça um documento público, como o Relatório Final, que possui informações de interesse público?

Nesse sistema há uma relativização da regra universal da ampla defesa e do contraditório, corroborando com sua origem e característica inquisitiva. Chega a ser tão complexo e contraditório esse sistema, que mesmo tento caráter exclusivamente preventivo, utiliza-se de técnicas e construção tão próximas a de um inquérito que dificulta sua não utilização em um processo judicial, especialmente quando aponta condutas humanas como fatores contribuintes (causas). Curiosamente, mas não coincidentemente, o relatório é a última peça de um inquérito.

Nessa evolução, talvez o que falte para o Sistema seja mudar os paradigmas da investigação e abandonar esse modelo ou essa forma utilizada pelo inquérito. Não entrar em discussões subjetivas, principalmente as que analisam as condutas e aspectos psicológicos e fisiológicos das tripulações. Sabemos que não é uma tarefa fácil.

Ater-se especificamente para as ações que podem contribuir para melhorar a segurança de voo e não exclusivamente as que contribuíram com o acidente. Pois se mantém sua atenção nas causas, especialmente nas humanas, indiretamente aponta responsabilidades e aí retomamos a discussão.

Investir mais na pesquisa, prevenção e na predição é o melhor caminho. Investigação é assunto para a polícia e para a justiça. O CENIPA evoluiu muito seus processos de análise e pesquisa de um acidente aeronáutico, porém precisa atualizar a forma e abandonar modelos que induzem ou conduzem ao inquérito, especialmente as terminologias e a forma de construção do relatório.

Embora o sistema acredite na filosofia da prevenção, a Lei nº 12.970/2014 que trata do acesso a informações do SIPAER e sobre sigilo nas investigações de acidentes aéreos no Brasil, está sendo questionada pela Procuradoria Geral da República através de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5667), com pedido de liminar ao STF.

Segundo a ADI, as análises e conclusões da investigação do SIPAER não podem ser utilizadas para fins probatórios em processos e procedimentos administrativos e judiciais, além de restringir o acesso de pessoas e órgãos envolvidos às informações que são de seu legítimo interesse e necessárias ao cumprimento de sua missão constitucional, como o Ministério Público e a polícia judiciária.

Como isso, percebemos que o sistema ao se tornar hermético gera mais conflitos que soluções. A história mostrou que o sistema abandou o inquérito, porém manteve a investigação que é o seu modal de atuação e mantém modelo e forma de instrução semelhante.

Talvez esteja ai o paradigma a ser vencido. Essa relação de controle e poder não fortalece o SIPAER. Abandonar agora a investigação e adotar um modelo que tenha relação com o que se pretende que é exclusivamente a prevenção de novos acidentes seja mais recomendável.

Pesquisar e propor ações para correção e melhorias do sistema e deixar a investigação para a polícia. Pesquisar as causas para apontar as melhorias e ponto. Transformar a pesquisa de um acidente em procedimentos ou recomendações que melhorem efetivamente a segurança, abandonando esse modelo investigativo.

O sistema evoluiu muito nessas décadas, mas se pretendem manter relação harmoniosa e complementar com o Judiciário e com a Polícia, essa atualização do sistema ajudará muito a segurança da aviação e das pessoas e o Brasil pode ser o pioneiro nisso.

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