Por Maria Miqueletto, Gazeta do Povo.
Paraná – “Me olham como a última esperança”, diz médica premiada em desafio de resgate. Cirurgiã plástica de formação, Michele Mamprim Grippa trabalha há nove anos com atendimento pré-hospitalar no Siate de Curitiba.
Entre uma cirurgia plástica e outra, a médica Michele Mamprim Grippa tem uma missão especial. Às quintas-feiras veste seu uniforme impecável e chega logo cedo, às 7 horas, ao Quartel Central do Corpo de Bombeiros ou ao Aeroporto do Bacacheri, dependendo da escala.
A cirurgiã faz parte do corpo clínico do Siate (Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência) e atua como socorrista em resgates médicos terrestres e aéreos. Esse é seu trabalho, mas descrevê-lo como uma missão representa muito melhor o espaço que o atendimento pré-hospitalar ocupa em sua vida — uma paixão que faz seus olhos ora brilharem, ora conterem as lágrimas.
“Todo resgate que nós fazemos eu tenho a certeza de que faria tudo de novo. Poder entregar uma vítima com vida, estabilizada, muitas vezes em casos em que sei que, se a gente não estivesse ali, ela morreria, isso não tem preço”, conta, emocionada.
Além de fazer parte do Siate há nove anos, Michele decidiu se lançar em uma nova empreitada: participar da competição que reúne os melhores profissionais da área, o Desafio Mundial de Resgate. Ela e sua dupla, o enfermeiro Luis Gaudêncio, também do Siate de Curitiba, venceram por dois anos consecutivos a etapa nacional.
Michele conta que a vontade de trabalhar com atendimento pré-hospitalar tomou forma quando fez residência em cirurgia geral no Hospital Cajuru. Ao ver seus colegas chegarem ao pronto-socorro com vítimas, soube que queria estar na rua trazendo pacientes.
O sonho se concretizou logo após terminar uma especialização em cirurgia plástica — área em que atua até hoje.
“Convivo com dois extremos que se completam — de um lado, na cirurgia plástica, eu quero rotina, quero tudo certinho, mas do outro lado, no resgate, tenho zero rotina e adoro”, compara e se diverte com o aparente antagonismo, deixando de lado a formalidade realçada pelo uniforme militar que usa.
Ao redor do mundo
Quando participou do Desafio Mundial de Resgate em 2016, Michele não imaginou que nos anos seguintes seria a vencedora da prova nacional e viajaria pelo mundo representando o Siate e o resgate médico brasileiro — mas o tempo só fez aumentar o entusiasmo pela prova.
“O mais legal é que muito do que fazemos na competição, a gente consegue transferir para os nossos atendimentos do dia a dia. Em relação à agilidade, definição de diagnóstico precoce e, especialmente, o trabalho em equipe”. Esse último item é, para a médica, o alicerce mais importante para os salvamentos, pois nos resgates “não se faz nada sozinho”.
A competição é organizada pela ONG World Rescue Organization (WRO), sediada no Reino Unido, como uma das ações promovidas para o aperfeiçoamento do atendimento pré-hospitalar. O desafio é composto por duas etapas, nacional e mundial.
O primeiro resultado da dupla, em 2016, foi o 9º lugar na competição. No ano seguinte, na Romênia, subiram para a oitava posição depois de vencer a etapa nacional. Em 2018, após vencer novamente o nacional, foram para a África do Sul e voltaram com o 11º lugar na prova.
Ganhar conhecimento e crescimento pessoal é parte do prêmio, mas o que mais motiva Michele a participar dos desafios é tornar o Siate conhecido internacionalmente: “Queremos mostrar que temos um serviço de excelência no Brasil e não estamos perdendo em nada para os países de primeiro mundo nesta área”. O Siate foi pioneiro ao inaugurar, em 1990, um novo modelo de atendimento pré-hospitalar no país.
A rotina na 1133 e no Falcão 03 e 04
O primeiro atendimento pré-hospitalar de Michele, com a ambulância de intervenção rápida 1133, foi em uma colisão entre um caminhão, dois carros e uma moto. Eram oito vítimas, com quatro óbitos — dois deles crianças.
“Aquele dia foi um teste de fogo e eu nunca tive tanta certeza de que era aquilo que eu queria fazer. Depois daquele dia eu falei: ‘eu tenho que ser melhor nisso aqui, quero ser a melhor”, recorda, com um mix de pesar e orgulho.
Apesar dos desafios da profissão, como a falta de rotina e as dificuldades específicas de cada atendimento, Michele mantém o mesmo fascínio do início. Para a médica, o encanto com o trabalho está justamente na preparação constante para atender todos os tipos de emergência.
A médica integra a equipe de atendimento aeromédico do Batalhão de Polícia Militar de Operações Aéreas (BPMOA) desde dezembro de 2017. Com o atendimento aéreo, os riscos ficaram maiores, mas nem por isso seu marido Adriano, e seus três filhos — a Sofia de 7 anos e os gêmeos Antonio e Gabriel, de 3 — deixaram de apoiá-la e oferecer todo o suporte.
“Os riscos são grandes, por isso existe muito treinamento e estudo. Se eu vou pra uma situação pode ameaçar nossa integridade, aguardamos até o risco ser eliminado para atender a vítima”, garante.
Um aspecto do trabalho não se alterou com a mudança: o controle emocional necessário em cada atendimento. Um dos casos mais difíceis para Michele foi o atendimento de três crianças — de 9, 10 e 11 anos —, afogadas em uma cava na região rural de Colombo. Depois de duas horas e meia de reanimação, todas faleceram.
“A gente sofre calado, evita transparecer as emoções, mas tem vezes que é muito difícil. Já fechei a porta da ambulância e chorei muito por me sentir impotente, mas por outro lado muitas vezes nos abraçamos e comemoramos por salvar uma vida”, pondera.
Quando perguntada sobre as histórias mais marcantes, Michele garante que poderia passar o dia falando sobre elas — mas a primeira que lhe vêm à cabeça é a de um atendimento que fez há três anos.
Um menino de 13 anos tinha sido atropelado por um ônibus biarticulado. O adolescente, ainda com a mochila do colégio, estava inconsciente, com a respiração muito difícil devido à hemorragia e perda encefálica.
Michele viu que a lesão era grave e ele poderia morrer em minutos, mas conseguiu estabilizar a situação e levá-lo com vida ao hospital, onde ficou internado por dois meses. Aí vem a parte inesquecível da história: meses depois ele foi visitá-la no quartel. “Ele não teve sequelas e estava super bem, esse é o tipo de coisa que não tem como mensurar, nem como descrever”, relembra, sorrindo.
“Tem um capitão que fala que quando a aeronave chega para socorrer as vítimas, os familiares olham com os olhos da esperança, porque acreditam que somos o último recurso que pode reverter aquela situação.”
O fator humano além do protocolo
A duras penas Michele entendeu que o fator humano é tão importante nos atendimentos quanto as técnicas e protocolos. A médica perdeu sua mãe em um acidente de carro em 2011, quando estava grávida de seis meses e já incorporava o time de resgate do Siate.
A tragédia fez sua perspectiva sobre os atendimentos mudar – depois disso, Michele agarra qualquer fio de esperança, mesmo em casos gravíssimos, para que o coração da vítima continue batendo por mais algum tempo.
“Eu preferiria muito mais ir para Maringá ver minha mãe na UTI e ter uma semana para me despedir do que ir para o velório. Então é nessa posição que me coloco: se eu posso dar uma chance para a família se despedir, eu vou tentar fazer com que eles tenham esse tempo”.
“Quem perdeu um parente de forma trágica tem a sensação de que aquela pessoa foi arrancada de você. Agora, se você tem dias para assimilar aquilo, mesmo com a pessoa inconsciente, acho que fica mais fácil para fechar esse ciclo.”
Outros casos a fizeram aplicar a filosofia na prática. Certa vez atendeu um rapaz que teve uma queda de 40 metros em uma pedreira desativada em Campo Magro. Ao chegar, já sabia que as chances de sobrevivência da vítima eram raríssimas, mas ao ver que os pais estavam por lá também, sabia o que devia ser feito: tentou reanimá-lo durante 30 minutos até que o inevitável aconteceu.
“O papel do pré-hospitalar é poder fazer com que a vítima sobreviva, mas também estar lá para dar uma resposta e conforto aos parentes – e isso está fora dos livros, só se aprende com a experiência”, analisa.